Tatiana Sabadini espalha por Brasília um lambe-lambe com a frase “Nada Muda Se Nada Muda”. Eu, que gostaria de ter o tal lambe na minha parede, mas moro bem longe de Brasília, contentei-me em usar letrinhas de EVA com ímã para deixar a sentença registrada na porta da geladeira, como lembrete para mim e para quem mais as palavras tiverem serventia.
Não se passaram dois dias até que o primeiro engraçadinho – a saber, o marido – resolvesse trocar e acrescentar letras. Ao que, pela manhã, minha geladeira dizia: “Nada Muda Sem Bermuda”. “Se é para mudar, então mudei, ué”, explicou o marido.
Mais uns dias se passaram, e a intervenção, dessa vez, foi minha: “Nada Nua Sem Bermuda”, a geladeira afirmava. E a brincadeira teria continuado, não fosse essa ideia minha de pegar um avião para Barcelona.
Em Barcelona, caminhei a esmo, deixando-me guiar por “sinais” – ou a forma tendenciosa como meu inconsciente decide interpretar eventos aleatórios, baseado nos meus desejos mais ocultos e na mitologia particular da minha existência. Como disse no meu último livro, Pandora Não Dormia, “Não acredito nos sinais do Universo, mas sigo todos porque não sou tonta.” Esse é um bom caminho do meio a que cheguei, entre minha parte científica (ponderada, mas chata) e minha parte mística (psicótica, mas feliz). Nem muito Freud, nem muito Jung, que isso de achar que um homem branco sozinho é retentor da verdade absoluta me dá coceira. #medeixa.
Foi nessas andanças, que deixei o restaurante famoso pelas filas, mas que tinha a última mesa me esperando, sem reservas, e cheguei, surpresa, à praia. O horizonte se abriu além do calçadão, no abraço acolhedor do mar. Respira-se diferente quando em presença de grandes extensões de água.
Andei no ritmo das ondas, inspirando o movimento das pessoas à minha volta: a professora com a excursão de escola, tentando organizar trinta crianças de maiô; o hipster local de barba ao vento, fone de ouvido gigante, ziguezagueando de patins; os turistas americanos de meias três quartos e chapéu, segurando suas câmeras com as duas mãos, respirando pelas bocas abertas, e procurando um bar onde beber um drink colorido com guarda-chuva, e experimentar uma paella, que, ainda que pega-turista, vai ser a melhor coisa que comeram na vida, depois do cachorro-quente do Costco.
Fazia calor, e eu fazia a digestão da melhor comida não turística que eu comera àquele dia. Por isso, decidi que queria me sentar na areia e olhar o mar. Havia uma parte minha – a saber, aquela ponderada e chata – que planejara ir à praia no dia seguinte, munida de toalha e roupa de banho, preparada e apropriada, e que sugeria que era melhor continuar caminhando por outras bandas, e “não gastar o plano de amanhã, hoje”. Afinal, não teria a menor graça sentar de calça e blusa preta embaixo do sol a pino. A minha outra parte, aquela mística e feliz, considerou um sinal do universo estar justamente caminhando em frente à praia de nudismo, para a qual não é preciso estar preparada, apropriada ou usando roupa de banho.
Pausa para explicar que Barcelona tem uma praia de nudismo assim, no meio da cidade, para todo mundo que toca o f*da-se para a opinião alheia ser livre e pelado o quanto quiser.
Eu ainda não sabia se queria ser tão livre e tão pelada assim, e, num primeiro momento, arranquei fora minhas calças, dobrando-a sobre a areia para ter onde me sentar, e guardando na bolsa a blusa e o sutiã. Por cinco segundos, enquanto sentava minha bunda de calcinha de algodão sobre a calça já cheia de areia, senti-me num daqueles pesadelos clássicos em que você caminha pela cidade e se dá conta de estar nua. A sensação não durou muito, no entanto, porque, como dizem os turistas americanos, aquele não era meu primeiro rodeio.
Foi durante uma viagem à Croácia, uns dois verões atrás, que tive o imenso prazer de deixar meus peitos sob o sol pela primeira vez. Tirar a parte de cima do biquini em público tem o efeito terapêutico de tirar das costas uma mochila pesada de traumas geracionais, que imediatamente faz com que você se sinta mais linda e mais leve. Ao pular seminua no mar, você descobre uma coisa fantástica a respeito do próprio corpo, que deveria ter sido óbvio a vida toda: peitos boiam. Eles são livres sob a água, sem a constrição do patriarcado. E quando eu boio, relaxada no limiar da água e do ar, aprecio aquelas duas ilhas redondas despontando no mar, sua pele nunca dantes tocada pelo sol, como areia branca e iridescente em contraste com o azul-esverdeado da água.
Ali ao lado, soubermos, havia uma praia de nudismo. E ninguém mais da família quis ir comigo além do marido. Mais afastada, a praia era isolada por um pequeno arvoredo, que cobria as vergonhas da meia dúzia de pelados que ali estava. Ficar nua ali foi como voltar a tempos ancestrais, se nossos ancestrais andassem nus na praia, carregando suas Havaianas nas mãos. Foi certamente mais fácil simples tirar a roupa na praia junto de alguém com quem já estou acostumada a tirar a roupa. Ainda que as risadinhas quinta-série de quem está aprontando fossem novidade. A aventura de ser pelado na frente de dois ou três estranhos e um monte de árvores acabou quando tentamos nadar livres e selvagens, e encontramos uma invasão de águas-vivas nas primeiras ondas, em tal quantidade, que saiu até no jornal. O jornal dizia que aquelas águas-vivas não eram letais, só davam uma dorzinha. Eu, que não sei explicar em croata para um médico que tomei queimada de água-viva na bunda, resolvi não arriscar.
De volta à Barcelona, sentindo o sol aquecer os peitos livres, olho à minha volta. Há turistas japoneses de roupa e guarda-chuva de um lado. Há mulheres de biquini lendo livros, deitadas sobre suas cangas. Há vendedores paquistaneses olhando as mulheres de biquini, e tentando vender-lhes mais outras cangas. Há um casal espanhol que acabou de chegar com toalha e cesta de piquenique, e que abre um vinho, abre um queijo, abre a calça e tira a blusa, e os dois, que conversam como meros colegas de trabalho, correm pelados para a água, como crianças felizes. Há um homem barrigudo lendo o jornal, apoiado em sua bicicleta, usada como varal das roupas que ele não usa. Há todo um grupo da terceira idade, muito em forma e bronzeado, cabelos brancos ao vento e nenhum pelo pubiano, sorrindo, relaxados, contando histórias, deitados sobre suas esteiras. Uma das mulheres, de seus bem setenta anos, deita-se apoiada sobre o cotovelo, mão na cabeça, e as pernas abertas e dobradas na minha direção, como um César em sua espreguiçadeira. Além da nudez balouçante dos homens, e das amplas cavernas femininas, passam aqueles mesmos turistas americanos, respirando por suas bocas abertas, rindo suas risadinhas quinta-série de desconforto. E o hipster ziguezagueia pensando em outra coisa. E a professora da escola arrasta uma fila de crianças de cabelo molhado pelo calçadão, de volta à escola.
E eu que aprendi a tocar o f*da-se para a opinião alheia aos 44 anos, arranquei o algodão que restava e, pela segunda vez nesta década, descobri uma coisa fantástica a respeito do meu próprio corpo, e que deveria ter sido óbvia a vida toda: toda perseguida merece sentir a maresia, e faz com que você imediatamente se sinta dona do seu corpo e da sua vida. Vento na vulva é uma sensação de liberdade e poder tão tremenda, que deveria ser nome de alguma banda pós-punk de feminismo radical. Com vocês, Vento na Vulva!
Alguma coisa muito errada na gente se quebra e dissolve, quando expomos nosso corpo dessa forma, sem nenhuma relação objetal ou mercadológica. Não estou nua para atrair um macho, para chamar atenção, não estou nua para vender meu disco, para protestar, para argumentar. Estou nua porque é gostoso tomar sol nua, pelo simples prazer de ser completamente.
Se a todas as mulheres isso fosse permitido, seríamos imperatrizes da p*rra toda.
E enquanto relaxava sobre a areia, olhando o mar que se abria por entre os meus joelhos, pensava como era possível que todos os turistas anglo-saxões daquele calçadão não corressem na praia arrancando suas roupas, finalmente livres e em êxtase. Olhavam as vergonhas alheias numa pausa surpresa, riam suas quintas-séries reprimidas, e apertavam o passo, antes que alguma coisa lhes despertasse internamente. Enquanto isso, eu respirava devagar, porque se respira diferente quando em presença de grandes extensões de água. Meu corpo, como as conchas, ecoava o mar.
Nada muda se nada muda. Nada nua sem bermuda.
A parte news da newsletter:
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Já falei, mas falo de novo: dia 10 de julho, às 19 horas de Brasília, eu, Laís Romero e Ana Salvagni estaremos no evento online Miudezas Literárias, promovido pelo Clube Cidade Solitária eCom.Tato Comunicação. O evento é gratuito, basta se inscrever nesse link:
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Nós três, mediadas pela Thaís Campolina, vamos ler poesias autorais, e conversar com os participantes a respeito de processos criativos e poesia contemporânea. Reserve já seu lugar!
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“Não acredito nos sinais do Universo, mas sigo todos porque não sou tonta.”
Que texto maravilhoso Ana! Quando morei na Alemanha onde as pessoas ficam peladas sem nenhuma cerimônia, sempre pensei que considerar a nudez com esse naturalidade óbvia fazia milagres na cultura e mentalidade de um povo. O relacionamento que se há com o próprio corpo (e com o corpo dos outros) condiciona todos os aspectos culturais e sociais dos indivíduos. Acho que é Mary Douglas no "Natural Symbols" quem diz mais ou menos isso.
E essa parte aqui "caminhei a esmo, deixando-me guiar por “sinais” – ou a forma tendenciosa como meu inconsciente decide interpretar eventos aleatórios, baseado nos meus desejos mais ocultos e na mitologia particular da minha existência" vai virar a citação da minha geladeira!
Um abraço!