“Isso é emocionalmente exaustivo”, eu ri, olhando ainda mais uma trilha arenosa e estreita que escorria sob o sol ribanceira abaixo, como um longo e doloroso escorregador natural, ladeado de pedras soltas, pequenas raízes de plantas rasteiras, e, por que não, cactos. “Como é que a gente desce isso?”, perguntei ao outro corredor atrás de mim, um quarentão também vindo das planícies de Ontario para se aventurar numa ultramaratona de 50km com 2300 metros de elevação. “Oh, boy”, ele suspirou. A ladeira talvez tivesse sido mais gentil horas antes, quando a terra ainda retinha a umidade da chuva dos dias anteriores. Mas o sol pleno, o vento e as passadas largas e confiantes dos corredores mais experientes, que por ali haviam passado, destruíram qualquer nuance de apoio para os pés que aquele caminho tivera um dia. Parei na beirada, criança pequena tomando coragem de descer o tobogã, e ensaiei onde apoiar meus running poles, cutucando a areia clara que deslizava morro abaixo. “Acho que vou descer de bunda”, ri novamente. “Sacumé, cair de bunda eu já vou mesmo, pelo menos economiza a queda.”
“Acho que dá para ir pela lateral”, disse ele, pisando com cuidado as pedras e raízes, enfiando as pernas entre arbustos hirsutos. Segui seus passos, me equilibrando na vegetação rasteira, rezando internamente para que, na tentativa de não cair de bunda na areia, eu não despencasse sentada num cacto.
Aquela havia sido a descida mais íngreme até então. Ao menos eu tivera a presença de espírito de parar num plano e amarrar outra vez meus tênis, apertando-os forte até quase o desconforto, para evitar que meus pés continuassem escorregando dentro deles, esmagando os meus dedos com todo o peso do meu corpo a cada passo rápido equilibrado nas pirambeiras, feito bailarinas em sapatilhas de ponta. Os joelhos, que reclamaram dos solavancos da corrida morro abaixo já no quilômetro dez, pareciam ter se aquietado. Talvez ainda doessem. Mas como eu estivesse decidida a continuar o movimento, os nervos talvez tivessem desistido de enviar qualquer sinal de alerta ao cérebro. “Deixa essa louca fazer o que quiser, que a gente não se importa mais”, dizia minha rótula à minha iliotibial. Eu reencontraria nas estações de apoio muitos participantes que me passaram em alta velocidade: sentados em cadeiras, com emplastros nos joelhos, e desejando sorte aos outros que terminariam a prova.
A verdade é que os treinos de força que fiz nos degraus de casa haviam dado resultado: as pernas desciam e subiam sem (muita) dificuldade, ainda que devagar. Os novos suplementos de ferro que o médico receitara para minha anemia, mais a dieta neandertal do último mês, pareciam também ter algum efeito: a energia estava lá, de alguma forma, me fazendo correr gostoso nas trilhas planas que cortavam plantações de trigo que ondulavam ao vento até a curvatura do mundo. Daria tudo certo, porque eu havia feito meus cálculos, e se eu andasse a prova toda, terminaria dentro do limite de tempo. Não precisava ter pressa: eu podia usar da boa e velha estratégia de trail running sem preocupações: anda na subida, trota na descida, corre no plano.
Mas havia subidas e subidas, assim como havia descidas e descidas.
Depois de lidar com os tobogãs de areia, era hora de brincar nas represas dos castores. O sobe e desce das trilhas ziguezagueava por um vale cujo fundo era um imenso charque. Ali um pequeno grupo de árvores ensaiando outono traziam uma breve sombra para nos proteger do sol a pino. A areia era substituída por uma lama preta e espessa como massa de brownie antes de ir ao forno, onde os pés deslizavam velozmente, lançando corredores para todos os lados, e garantindo o tradicional carimbo de participação da sua bunda na lama. Troncos haviam sido deixados sobre o terreno encharcado, e nos equilibrávamos feito crianças sobre eles, na vã tentativa de não cair e enfiar o pé na água escura até os joelhos. Nossos pés ficariam invariavelmente encharcados, mas o vento seco e o sol forte que nos esperava lá no alto daria conta de secá-los o bastante para que os tênis reserva, deixados à espera no quilômetro 33, não fossem necessários. O vale todo se enchia de risadas e pequenos gritos surpresos emanando do arvoredo úmido. Eu ria junto, achando graça de nós adultos arrumando desculpas para brincar no lamaçal.
E lama havia. Ela se esparramava pelas laterais íngremes dos morros, e, de pés molhados, eu ria ainda, de nervoso, vendo as marcas da derrapagem alheia naquilo que chamavam de trilha morro acima. Espetava os running poles bem fundo na lama, na atura do meu peito, para escorar minha subida. (Espeta o palito no brownie para ver se está pronto, mas está cru e molenga ainda.) Agradecia à força das pernas e à tração do solado dos meus tênis quando o corpo inteiro não descia, devagar, tudo aquilo que eu galgara até então. Seria desesperador se não fosse tão absolutamente ridículo.
Ao menos, eu pensava, os paredões de lama são perto do chão. Melhores que os paredões de areia, perto das nuvens. E acostumada a olhar meus pés pisando os sulcos na trilha, assustei quando não encontrei mais trilha nenhuma. Olhei para trás, para ver se havia errado alguma coisa, já que havia dado, literalmente, de nariz no morro. Firmei meus pés e os poles no lugar, para que o vento forte não me derrubasse daquele ponto já íngreme, e olhei para cima. Uma pessoa se empoleirava muitos metros acima de mim, num caminho só reconhecível por algumas bandeirinhas laranja, num ângulo tão agudo que, mais uma vez, comecei a rir. Eu tenho disso de ter ataques de riso quando sinto medo. Ou dor. Só minha analista explica.
Mas respirei fundo, muito fundo, e me convenci de que era capaz de subir aquilo sem passar muita vergonha. Sem encontrar ponto firme onde apoiar os pés, usei da técnica de subir ladeira com neve, chutando a areia seca e os pedregulhos até lhes abrir um buraco onde pudesse encaixar a ponta do tênis. Segurava os poles pela sua metade, e os espetava com alguma força no chão à altura da cintura, e, mantendo o rosto fixo àquela parede a meio metro do meu nariz, respirava fundo novamente antes do próximo passo. O sol intenso do meio do dia fazia a areia amarelo-clara exalar calor em ondas, que embaçava meus óculos escuros. Sabia que estava fragilmente apoiada ali, e evitava mover a cabeça para cima ou para baixo, temendo uma tontura que me derrubasse morro abaixo. Quando o vento das planícies chegou com força, a areia se ergueu e moveu, e meu corpo inteiro tremulou ali em cima como o trigo das planícies. Apertei as mãos nos poles, e tentei flexionar os joelhos, jogando o corpo em direção à parede, para me manter estável. E o boné se agitou na testa. “Se o boné voar, não se mexe”, eu repetia, agora também com medo de que o susto do boné arrancado pelo vento me provocasse um espasmo que me desequilibraria de vez. “Se o boné voar, não se mexe!”
Minhas pernas tremiam quando cheguei ao topo. Respira fundo. Limpei a areia que cobria o visor do relógio, aquela mesma areia fina que se misturava ao sal do suor seco em minha pele. E, depois daquilo, correr na crista estreita dos morros, ladeada pelas duas encostas, não parecia tão ruim assim. Aquele último quilômetro me custara 24 minutos, e eu me movera tão devagar e apenas para cima, que meu relógio consideraria aquilo como tempo parada. Eu precisava ganhar tempo, agora, correndo nos terrenos mais planos.
Mas torci o pé em um buraco ocultado pela vegetação lateral. Tropecei numa pedra e numa raiz e numa pedra e outra pedra e ainda mais uma raiz, antes ainda de chegar naquele estado de cansaço de fim de prova em que você não levanta tanto os pés para correr. As trilhas mais largas e planas, contornadas por capim e trigo, eram tão estreitas quanto corredores da classe econômica de aviões de voos locais, que não têm nem lanche nem entretenimento, repletas de cactos-surpresa pelo caminho, me fazendo pular amarelinha durante a corrida. Outras, aquelas que subiam e desciam num ângulo gentil, espiralando as encostas, quase não comportavam dois pés juntos, um ao lado do outro. Meus running poles se enroscavam nos arbustos rasteiros que emparedavam os morros, tanto quanto meus tênis insistiam em chutar as raízes finas como cobras de jardim. Meus pés pisavam tortos sobre o terreno acidentado e inclinado para fora, em direção ao vale, jogando meu peso sobre os dedinhos que se acomodavam dolorosamente sob os outros dedos, e ensaiando torções nos tornozelos.
Conforme aumentavam os tropeços e a quilometragem, eu perdia a coragem de correr como gente que não tem medo de cair. Porque eu tenho um bocado de medo de cair, e já caí o bastante para saber que o chão machuca. Principalmente quando o chão está muito, muito lá embaixo, e a perspectiva é rolar sobre galhos e espinhos até alcançá-lo. Minha corrida era menos rápida na aceleração de minha cautela. E as subidas e descidas cuja inclinação não teria me ameaçado começavam a ficar assustadoramente lentas.
A única coisa que aumentava rápido era minha frustração. Havia escolhido aquela prova porque haviam descrito como “pouco técnica, com algumas ladeiras íngremes, mas “corrível” na maior parte”. Minha última ultramaratona, a primeira com considerável elevação (1800m), havia deixado um gosto ruim na boca: o terreno técnico e íngreme, repleto de pedras com limo e um emaranhado de raízes enlameadas sob a floresta, onde era difícil encaixar os passos, havia sido demais para mim, e terminei num tempo muito acima do que eu pretendia. Eu procurava uma prova com alturas desafiadoras, mas trilhas de terra batida às quais eu me acostumara, em que pudesse me concentrar no pace e apenas correr muito, muito longe. Os poucos vídeos que encontrei da Beaver Flat 50 pareciam exatamente isso, e pensei: “vou tentar correr com altura de novo – essa prova é para mim!” O que eu não sabia era que as partes filmadas pelos participantes eram as mesmas em que eu mesma saquei a câmera: trechos em que as mãos estavam livres, e não auxiliando na força quatro-por-quatro para escalar paredões. Os trechos mais difíceis não aparecem em vídeo nenhum.
Quando me dei conta da dificuldade real da prova, já estava no meio dela, e a meta de terminar correndo havia se tornado a meta de terminar e qualquer forma. Então, conforme minha água e minha energia começavam a acabar, mais cedo do que o esperado, a meta de terminar os 50km de qualquer forma se transformou na meta de chegar à próxima estação de apoio dentro do tempo limite, e então decidir se era possível continuar. Cheguei com folga de 40 minutos na primeira estação. Folga de 30 na segunda. Dez minutos na terceira.
Dizem que a cabeça desiste antes do corpo.
Andava rápido nas ladeiras, corpo pesado, sentindo o gelo que me haviam colocado dentro do boné escorrendo pelo pescoço, aliviando o calor forte. Eu era uma das últimas pessoas ali. Quando no alto, podia ver os outros corredores já distantes, nas cristas dos morros, formiguinhas se movendo rápido sobre formigueiros gigantes, e as trilhas finas e longínquas que riscavam os morros pareciam infinitas. Eu não pertencia. Minhas habilidades técnicas não pertenciam àquele tipo de prova. Mesmo descontando minha anemia, e mesmo com todo o volume de treino a que me dedicara àquele ano, eu não me sentia física e emocionalmente capaz de correr como aquelas pessoas.
O homem de Ontario me contou de suas outras ultras, que ele sempre faz da mesma forma, apenas hiking, sem quase correr. No quilômetro 37, ele decidiu que ainda tinha energia, e desapareceu numa curva da trilha. Torço para que ele tenha chegado na estação a tempo. E enquanto eu andava tão rápido quanto podia, sem ainda querer desistir, pensei que gostaria de estar correndo. Gostaria de estar correndo os 50km inteiros, daquele jeito gostoso de quem entra num movimento automático e não tem mais que pensar nas pernas, ou em nada. Gostaria de estar correndo leve, sem pensar nas pedras e raízes do caminho. Gostaria de estar correndo, não hiking, não escalando, não descendo tobogãs, não pulando obstáculos e suando frio ao me equilibrar em ribanceiras. Gostaria de estar correndo apenas, porque gosto de correr apenas. Gosto da distância sob os pés.
Uma mulher da minha idade me explicava que os amigos não entendem por que ela participa dessas provas. Ela corria ladeira abaixo com velocidade e técnica, mas fora proibida de correr subidas, pois seu estômago se incomoda e ela podia vomitar. Enquanto corremos juntos, ela fazia sons estranhos de quem sofre para manter a comida no estômago. E quando brinquei que as descidas doíam mais que as subidas, ela disse: “Se não dói, não vale a pena”.
Mesmo?, pensei. Eu corro porque me dá prazer. Deixei que ela corresse ladeira abaixo para longe de mim, e pensei se aquela dor valia a pena. Se aquele stress era o que fazia a medalha no final ter valor. Pensava olhando o chão, escolhendo onde pisar para que não torcesse o pé de novo. E me irritei por olhar o chão. Irritei-me por estar num lugar tão estranhamente bonito, e não poder correr apreciando a vista. E irritada, ergui os olhos para o horizonte infinito além do vale e o caminho que me esperava, e pela primeira vez em uma prova, desejei que aquilo apenas acabasse logo.
Não moça, não é o sofrimento que faz valer a pena para mim. Um dia meu guru me disse: se você está sofrendo, não é o seu caminho. E repeti aquelas palavras para mim mesma: esse não é o meu caminho.
Eu veria aquela mulher terminando a prova, horas depois.
Quando eram cinco e meia da tarde, o horário limite para a marca dos 43km, eu estava a 1,5km da estação de apoio. Tão perto, tão longe. Parei para olhar o relógio virando a dezena dos minutos, como quem comemora um réveillon solitário. O sentimento era de alívio melancólico. O primeiro Did Not Finish a gente nunca esquece. Não faria o vídeo emocionante do sprint final da linha de chegada. Não sofrera o bastante por minha medalha de participação. E na ausência incômoda daquele ansiado gozo, havia também a leveza de um contorno: eu não gosto desse tipo de corrida.
Pronto. Falei.
“Mas se você não estivesse anêmica, teria terminado!”, me diriam. “Mas se não tivesse o corte por tempo...” “Mas se você tivesse treinado de outra forma...” Mas se, mas se, mas se.
Mas quando eu sou honesta comigo mesma, admito que para aprender a correr os trechos que não pude correr, e que me atrasaram e atrapalharam e frustraram, eu precisaria ser uma pessa mono-hobby: e trocar quase todo o meu tempo livre por treinos de corrida. E isso eu realmente não quero para mim. Eu não sou essa pessoa. E porque talvez nunca sequer tenha sido, posso parar de fazer força para sê-la. Eu sou a pessoa que corre o longe e o leve, não a pessoa que corre o difícil. Sou a pessoa que se divertiu horrores na ultra mais plana do Canadá: 50km em estrada de terra, com 180m de elevação. Sou a pessoa que correu aqueles 50km inteiros, olhando ao meu redor e procurando passarinhos. Eu não quero mais fazer provas cujo terreno me faça olhar o chão. Eu não sou a pessoa da corrida técnica.
E esse peso morto despencou no meio da trilha, permitindo que eu caminhasse tranquila o último quilômetro e meio até a estação que me levaria de carro de volta à largada. “Você fez 43km”, um voluntário disse. “Se é mais que uma maratona, foi uma ultra de qualquer forma!” Eu ri. De fato. Tem aquela história de que cada 100 metros de elevação equivale a 1km corrido em termos de energia gasta. Os meus 1400 metros de elevação transformaram minha maratona em um esforço equivalente a 57km no reto. Nada mal. Passaria ainda uma semana vivendo aquele luto, chorando um pouco a morte de quem não fui. Lavando a areia da pele quente, deixando esfriarem os pés em brasa. Dormindo um sono profundo de quem descansa o corpo mas não descansa os sonhos. Desta prova, não trago uma medalha: trago uma camiseta, oito bolhas, uma unha roxa prestes a me abandonar, e a certeza de um caminho que é meu.
Pandora Não Dormia, agora em e-book!
Meu último livro está finalmente disponível em formato e-book na Amazon, e gratuito para quem tem Kindle Unlimited! Clique no link abaixo para comprar ou baixar uma amostra! E não esqueça de deixar estrelinhas!
Compre meus livros aqui:
MARTINS FONTES PAULISTA
AMAZON BRASIL
LIVRARIA DA TRAVESSA
LIVRARIA CANOA (EUA e CANADÁ)
MOCHO EDIÇÕES
UM LIVRO
CAROCHINHA EDITORA