Atrapalhei-me com o fuso horário e acordei duas horas mais cedo do que o necessário para fazer a inscrição na Beaver Flat 50, ultramaratona pequena e concorrida. Reservei o hotel rapidinho, para não acontecer como no ano anterior, em que bobeei e dormi numa espelunca. Acreditando que os preços das passagens aéreas fariam sentido, fiquei chocada quando descobri que ir para Regina, Saskatchewan, custa o mesmo que voar para Paris. Quis desistir, mas o marido teve a ideia de transformar a coisa toda num road trip, o que parecia muito divertido, até, dois meses antes da corrida, descobrirmos que a viagem de carro pelo meião do Canadá custaria a mesma coisa que aquela tal viagem imaginária a Paris. Cancela tudo? Resolvi checar a Air Canada outra vez, só de birra, e calhou que a passagem estava em promoção pela metade do preço, e eu tinha ainda um creditozinho para gastar. Esquisito ir apenas eu, sem minha usual torcida organizada, mas é a vida e é o budget. Lá vou eu atravessar o Canadá para correr solitária. O hotel estava cheio, não havia como trocar a reserva, e morri no prejuízo de dormir sozinha num quarto para quatro pessoas. Reservei um carro, e pelo menos isso não teve nenhum problema. Agora é só treinar.
Agora é só treinar, até uma severa deficiência de ferro, causada por uma massa fibrosa no meu útero, transformar todo o meu corpo treinado numa massa sem energia. Fiz exames, falei com médicos, troquei o suplemento de Ferro e me superalimentei feito um ganso francês pronto para virar Fois Gras. Dá-lhe carne, feijão e couve, para garantir uma corrida produtiva. Agora é só ir.
Agora é só ir quando dá, que a Air Canada mudou meu primeiro e confortável voo das dez da manhã para as sete, e fui zumbi e de mal humor para o aeroporto, pensando que meu layover de uma hora havia se transformado em quatro. Foi só passar pela segurança para descobrir que meu primeiro voo para Toronto, para o qual acordei às 4:45 da manhã, atrasou. Ao apresentar meu cartão de embarque e minha identidade, o moço da Air Canada disse que eu não podia embarcar, porque minha carteira de motorista estava vencida, e ele precisava de uma identidade válida. Minha carteira tinha expirado dois dias antes. A moça da Air Canada ao lado, pressentindo meu surto psicótico, sugeriu que eu renovasse online rapidinho. “Entra no site do Service Canada”, ela disse. E procurei com dedos trêmulos no celular qualquer coisa sobre renovação de carteira sem sucesso. Última chamada para o embarque. Não tem nada aqui de carteira de motorista!!! “Ai, desculpa”, ela disse. “Eu quis dizer Service Ontario.” Óbvio. Taqueospariu. Digitei números errados com dedos gelados. Digitei números certos. Confirmei. “Você não é elegível para a renovação de carteira online.”.
MOÇA EU TREINEI UM ANO PRA ESSA PROVA CÊ NÃO TÄ ENTENDENDO EU PRECISO ENTRAR NESSE AVIÃO!
E ela, calmamente: “Você não tem mais nenhum outro documento? Passaporte, PR, carteira de saúde?” CARTEIRA DE SAÚDE. Por algum mistério, ao contrário de quase todos os cidadãos de Ontario, minha carteira de saúde não tinha o mesmo vencimento da de motorista. Embarcada. Agora é só chegar.
Agora é só chegar, mas assim que me sentei na poltrona do avião, pensando na sorte de ter conseguido embarcar, lembrei-me que, com a carteira vencida, eu não poderia alugar o carro para dirigir as duas horas e vinte minutos de Regina a Swift Current, onde ficava meu hotel. Durante uma hora e meia de voo de Ottawa até Toronto, eu me perguntava se o VPN do celular havia atrapalhado a renovação – isso acontece. Chegaria ao aeroporto de Toronto, desligaria o VPN e tentaria de novo. Será alguma multa que eu não recebi e não paguei? Mas as multas vão para a placa do carro primeiro, não para minha carteira. Então lembrei: a renovação só pode ser feita online se a carteira ainda estiver válida. Eu só poderia renovar a carteira indo pessoalmente a um escritório do Service Ontario.
INSPIRA. EXPIRA. É IMPORTANTE LEMBRAR DE RESPIRAR. SEM OXIGÊNIO VOCÊ NÃO RESOLVE PROBLEMAS.
Assim que o avião pousou, uma mulher desesperada correu pelo aeroporto puxando sua malinha de mão até a saída, onde se enfiou num taxi que cobraria um rim por uma corrida até um Service Ontario a doze quilômetros dali e que abriria as portas em cinco minutos. Já tinha fila. Vai dar certo, pensei, porque eu tenho duas horas e meia para resolver isso, quinze minutos para voltar de Uber para o aeroporto e passar por toda a segurança de novo antes de pegar o voo para Regina. A moça que me atendeu riu da minha história. Enquanto ela batia uma nova foto minha, e me entregava os papéis provisórios que validavam minha carteira vencida, ela disse: “Tudo acontece por um motivo”. O motivo é que sou muito distraída e esqueci de checar a validade da minha carteira.
De volta ao aeroporto, no entanto, eu me dava conta de que se o primeiro voo não tivesse sido mudado pela Air Canada, eu não teria tido tempo, no breve layover original, de ir até o Service Ontario para renovar a carteira. Talvez tudo aconteça por um motivo. Agora é só embarcar.
Agora é só embarcar, mas quando meu voo para Regina atrasou QUATRO vezes, transformando meu já extenso layover de quatro horas em quase sete, eu começava a acreditar que o tal motivo era que a Air Canada, acostumada ao seu monopólio, está confortável em ser uma companhia aérea horrível. Então recebi um email da mesma avisando que seus pilotos entrariam em greve no dia de meu retorno, e que não garantiam a continuidade dos voos. Fui-me embora para Saskatchewan, lá sou amigo do rei. A triste história de quando mamãe foi para Regina e nunca mais voltou. A greve terminaria no mesmo dia em que ameaçou começar, garantindo o bom funcionamento da incompetência de sempre. E após apenas um atraso, eu embarcaria de volta para Ottawa.
Enquanto esperava o tal voo para Regina, algum funcionário do aeroporto aumentou a terrível música pop ambiente no saguão. Três grupos diferentes conversavam em línguas distintas como se estivessem no sofá da própria sala torcendo para algum jogo de futebol. Outras três pessoas assistiam a vídeos de TikTok pela metade sem fones de ouvido. Uma mulher de voz aguda interagia com o som de lata da chamada de vídeo do seu celular. Uma criança berrava. Constantemente. A moça da Air Canada repetia num tom anasalado, em inglês, e depois num francês ininteligível, os nomes de quatro pessoas que precisavam ir ao guichê para o embarque de um voo para Calgary, que atrasava pela oitava vez. As quatro pessoas não apareciam, o voo atrasava de novo, e a moça mantinha seu anúncio em loop. Ao meu lado, uma senhora de nariz inchado e vermelho, tirou da mala um cortador e começou a aparar as unhas sobre o tapete estampado do saguão, agora enfeitado de meias-luas. À minha frente, uma família se acomodou, se espalhando despudoradamente pelas cadeiras. Ele, chinelo, regatas, uma barriga cirrótica e uma mastigação de boca aberta. Ela, repetindo estampas animais na tentativa de emular uma chiqueza de televisão, fungando e sorvendo seu drink-sobremesa de café. A filha jogou os crocs no meio do caminho, e acomodou no colo um tablet com um desenho animado histérico, uma caixa grande de nuggets de frango e um copo imenso de seu próprio drink-sobremesa. Cutucou o tablet que brilhava colorido, e cutucou pelinhas soltas nos pés descalços. Cutucou, então, o próprio nariz. Cutucou de novo. Enfiou um dedo inteiro engordurado de frango na narina esquerda, procurando tesouros, que lhe escaparam e caíram sobre a perna. Procurou. Contente, apanhou o tesouro recém caído do nariz, e, sem nenhuma censura, comeu. Como um nugget.
A criança que berrava continuava berrando. A mãe começou a berrar de volta. Todos os supracitados personagens fariam parte do meu voo de três horas e meia.
Meti nos ouvidos dois plugs da 3M, e sobre as orelhas um fone ligado a coisa nenhuma. Tomei um Tylenol para a dor de cabeça, fechei os olhos, e imaginei a maravilha que ia ser correr sozinha e em silêncio no meio do nada por um dia inteiro. Se eu conseguisse chegar.
Embarcada e estressada pela segunda vez, adormeci no avião com uma facilidade nunca dantes vista: nada como estafa mental para pegar no sono sentada.
Para compensar toda essa gincana, tive um upgrade gratuito no meu carro alugado. A estrada era uma reta infinita que cortava o território mais plano que já vi, coberto de capim baixo, trigo dourado e vacas felizes, e quase nenhum sinal de vida humana. Estranhamente linda e desolada, imaginei o quanto aquela paisagem moldava o modo de pensar de quem crescia ali. No rádio, propagandas de adubo granulado e podólogos que consertam unha encravada. Nuvens de passarinhos. Uma chuva gostosa que eu sabia que tornaria a trilha arenosa mais agradável de correr no dia seguinte. A previsão para a prova era de um lindo dia de sol e deliciosos 21 graus. Cheguei a tempo de buscar meu kit. Meu número era 5040, e achei graça que minha idade era a média entre as duas dezenas. Comprei uma camiseta verde bonita para usar na volta. Fui jantar num pub local, onde tradicionalmente os canadenses não sabem servir cerveja com colarinho. O hotel era bom, e a cama, melhor ainda. Tive a melhor noite de sono pré-prova da minha vida. Descansada e feliz, acordei às cinco e meia para tomar meu café, me preparar, e dirigir meia hora até Saskatchewan Landing Provincial Park, local da prova. O parque fica num vale que surge depois de uma curva onde se acredita haver apenas horizonte. Gritei de alegria ao ver o trigo dançando no alto de colinas cor de coral, e as folhagens ensaiando outono ao longo do rio. Uma música country cantava no rádio a história de uma mulher que estava finalmente bem o bastante para enfrentar seus demônios. Cantei junto o refrão recém-aprendido. Foi difícil chegar, mas estou finalmente aqui. Agora é só correr.
Agora é só correr, mas...
(CONTINUA NA PRÓXIMA EDIÇÃO)
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Deu até falta de ar de tanta ansiedade aqui. Que bom que deu certo.
Ansiosa pela parte 2!!!