É o caso do sanduíche de cocô. (Ninguém precisa de aviso de gatilho aqui, que eu prometo uma quantidade zero de escatologia ao longo dessa crônica. O único risco é de chegar ao fim, e você achar esse texto uma m*rda.)
É o caso do sanduíche de cocô (deixa eu começar de novo, que acho que todo mundo ficou distraído com meu aviso de falta de aviso, e o começo do texto perdeu o impacto).
Peraí, que eu fiz de novo.
É o caso do sanduíche de cocô, que é como eu chamo minha filosofia para tolerância das chatices da vida. Porque toda vida tem chatices. E quem diz que não tem chatice na vida é um chato propagando positividade tóxica, que deve ser evitado a todos os custos, como se fosse um sanduíche de cocô literal. Vida tem chatice sim. E muitas dessas chatices, são, pela própria natureza do que é chato, inevitáveis. Porque se desse para evitar a chatice, não seria chato. É chato porque é o tal “faz parte”. Acontece que depois de um tempo achando que tinha que “fazer parte” mais chatice do que eu aguento engolir, inventei de tornar palatável a chatice inevitável da vida e estabelecer aquela coisa linda que todo mundo deveria ter, chamada “limites”. Ergo, sanduíche de cocô.
O sanduíche de cocô não é uma invenção minha. Que se fosse, eu certamente rechearia meu sanduíche de coisa mais apetitosa. Sanduíche de cocô, acredite ou não, é uma técnica de gerência de gente, inventada por alguém que claramente não tem muito prazer na vida, ou jamais teria dado para uma técnica de gerência um nome que associa comida a movimentos intestinais.
Meu marido vira e mexe aparece com um livro de autoajuda corporativa, com a última moda na gestão de pessoas, presenteado por algum chefe que não sabe gerir pessoas, e ao invés de aprender a liderar, quer ensinar os outros a obedecer. Num desses tesouros da intelectualidade empresarial, fui apresentada ao conceito do Shit Sandwich, ou Sanduíche de Cocô. Você, gestor anglo-saxão avesso a conflitos, sem saber como criticar o trabalho ruim do seu funcionário, pode entregar a sua opinião intestinal devidamente embalada em dois inúteis elogios. Assim: “Josilvado, eu adoro o azul que você usou nessa planilha, que está completamente errada e você tem que refazer de madrugada, mas vai ficar linda com todo esse seu talento pra escolher azuis.” Elogio – cocô – elogio.
Não surpreendentemente, essa fabulosa técnica passivo-agressiva de confundir o seu funcionário, garantindo a ineficiência da sua comunicação e a toxicidade do seu relacionamento empresarial, é muito difundida entre canadenses, que, como já vimos, são anglo-saxões e avessos a conflitos.
Acontece que isso não tem nada a ver comigo, porque eu trabalho em uma pré-escola, onde tenho pouca interação com adultos passivo-agressivos e muita interação com crianças de três anos ativamente assertivas. O emprego é meio período, paga ok, mas tem uma natureza repetitiva que o torna, depois de dois anos, uma tremenda chatice. Uma chatice inevitável, porque é preciso pagar contas, que também são uma chatice que “faz parte”. E foi por causa desse emprego que resolvi pegar para mim e ressignificar o termo “sanduíche de cocô”.
Lembrei do discurso de Neil Gaiman, dizendo que você pode ser um artista que entrega no prazo, tem um bom preço, mas é um babaca; um artista que entrega atrasado, tem um bom preço e é um cara legal; ou um artista que entrega no prazo, custa muito caro, mas é gente boa. Ninguém vai empregar você se você se você for legal, mas custar caro e entregar fora do prazo, ou se tiver um preço bom, mas for um babaca atrasado. Dois pontos positivos para um negativo parece ser a regra de ouro.
Daí que eu acho que Nietzche tinha razão, e toda coisa ruim tem dois lados positivos. Ou pelo menos deveria ter. E toda chatice na vida deveria ser tolerada porque é embrulhada em duas coisas que fazem com que a chatice seja moderadamente tolerável.
Tendo tido os mais diversos empregos ao longo da vida, acho que sou capaz de aguentar o trabalho mais xumbrega, desde que a compensação pelo tempo de vida que estou perdendo ali não seja apenas o dinheiro. Porque um emprego ruim que paga bem é apenas uma torrada de cocô. Ou uma bruschetta de cocô, se o tal emprego for passível de gourmetização no LinkedIn. Só uma bruschetta não mata a fome, nem tira da língua o gosto ruim do tédio e estresse da sobrevivência capitalista. Um negativo e um positivo, se meu cérebro de humanas lembra alguma coisa de matemática, se cancelam e não são nada. Moça, eu gosto de uma vantagenzinha. Se é para o engolir o que o diabo amassou, que seja em dois pãezinhos sourdough artesanais quentinhos do forno. Já tive emprego chato que pagava ok e tinha os melhores colegas de trabalho, que me faziam rir o expediente todo. Sanduíche de cocô.
Durante o inverno, quase pedi demissão. Porque em temperatura negativa, sem poder pedalar até o emprego, perdi a atividade que tornava meu humor positivo o suficiente para aturar o negativo da parte chata que é trabalhar. A primavera trouxe de volta o sabor da minha rotina.
Meu emprego chato está devidamente embalado: o pãozinho debaixo é que o emprego paga ok para um trabalho que só me ocupa metade do dia e me permite viver minha vida no restante. A fatia de cima é que posso ir e voltar de bicicleta, pela floresta. Passo uma hora do meu dia sentindo o vento no rosto, ouvindo passarinhos, vendo a natureza florescer outra vez, movimentando meu corpo, e dizendo olá para coelhinhos e marmotas pelo caminho. É um sanduíche de cocô natural. Eu prefiro queijo, mas é o que tem pra hoje.
A parte news da newsletter:
Prêmio Off Flip 2024
Saiu o resultado do Prêmio Off Flip de Literatura 2024, e a surpresa é que, além de ser selecionada para participar da coletânea de CRÔNICAS, com meu texto “Saudade de uma carta”, ainda fui finalista e destaque na categoria CONTOS, com “A ilha”. Meus textos estão nas duas coletâneas, já em pré-venda no site. :D
Aquarela
Entreguei recentemente mais uma encomenda. Um retrato em aquarela que me deu muito prazer em realizar. Você pode saber mais a respeito do processo neste post do Instagram:
No momento, estou trabalhando em duas outras encomendas, parecidas mas diferentes: duas pinturas de paisagem. A primeira vai sofrer interferência da cliente, que vai riscar um trecho de poesia por cima. A segunda vai ter um trecho de poema já incorporado à pintura por mim.
Estou com agenda aberta para novas encomendas. Mande uma mensagem e peça um orçamento!
Novo Website
Depois de muita tentativa e erro, em que tentei separar o que faço em categorias incategorizáveis, finalmente recriei meu website (bilingue, argh) de um jeito que minha bagunça faça sentido: assim, bagunçada. O foco dele é claramente design e ilustração editorial. Por tanto, sinta-se à vontade para enviar o endereço ao seu amigo editor ou aquela vizinha escritora independente, que anda procurando alguém para criar uma capa linda para seu novo livro. ;) Visite e recomende:
http://www.anaelisagranziera.com/
Compre meus livros aqui:
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