“Desistiu de viver?”, o marido perguntou, ao me encontrar esparramada sobre a cama, absorta em meu melhor olhar distante.
“Estou pensando”, expliquei, sem olhá-lo.
“Pensando em quê?”
“Hmm. Não estou ativamente pensando. Estou pensando passivamente.”
“E como diabos isso funciona?”
“Sabe quando você está no meio de uma conversa, e esquece o nome daquele ator que era importante para a história, e dois dias depois, enquanto está colocando roupa na máquina, o nome aparece na sua cabeça? O cérebro tem disso, de ficar tentando achar a resposta para uma pergunta, meio que inconscientemente, tipo computador processando as coisas, sem que você saiba que ele tá lá processando as coisas.”
“Oooooquei.”
“Eu tô meio que esperando o meu cérebro terminar de silenciosamente processar o que quer que ele esteja processando, para ver se uma resposta para meus problemas aparece assim, de repente. Tipo putz! Lembrei o que fazer da vida! Olha que bom! Sabe? Estou contemplativa. E esperando uma solução que só meu inconsciente enxerga.”
“Isso super funciona”, ele riu.
Dei de ombros.
Lembrei de uma cena distante, quando minha filha tinha três anos, e a peguei sentada na calçada em frente à casa, olhando para frente. Ali ela ficou, por uns vinte minutos, sem sequer se dar conta de que a mãe a observava, encantada com a criança pequena que sabia contemplar.
E lembrei ainda de outro dia, quando meu filho resmungou num canto da sala. Como todo adolescente, apesar de morar numa casa com jogos de tabuleiro, livros, material de arte, instrumentos musicais, bicicleta, skate, bolas de todos os esportes, e um quintal, ele misteriosamente não tinha nada para fazer.
“Senta e olha pra frente”, eu disse. Ele achou que eu estava brincando. “Senta e olha pra frente!”, insisti, apontando a confortável poltrona amarela ao lado da janela. “Ou deita e olha pra cima, sei lá”. Ele continuou sem entender, e eu comecei a explicar.
Quando eu era adolescente, a gente não tinha essa obsessão em ser distraído. A programação da TV era ruim, e ainda não existia internet. Quando eu ficava entediada, gostava de deitar na minha cama, onde batia um solzinho à tarde, e ficar olhando as nuvens além da minha janela. Aí vinha toda sorte de pensamentos, e eu largava a cabeça pensando o que quisesse. Pensava na escola, no que minha amiga disse, no menino de quem eu gostava, num filme que eu tinha visto, numa história que eu queria escrever. E ficava ali, contemplando. Era um pensar em qualquer coisa que também era pensar nada, como quando você medita e deixa as palavras e imagens irem e virem, sem prestar atenção a nenhuma específica. Relaxava a vista e a mente, como se meu cérebro descesse um riozinho lento de tédio, deitado numa boia de marasmo.
De repente, o cérebro avistava uma centelha embaixo d’água: uma ideia brilhante para chamar de sua, para interromper o tédio e criar arte, criar vida.
“Era nesses momentos de contemplação que eu tinha minhas melhores ideias”, eu disse. “A gente não precisa ficar distraído o tempo todo. As pessoas hoje têm essa ânsia de consumo por cada vez mais informação, e o que parece um medo enorme de ficar em silêncio com os próprios pensamentos. Tédio virou pecado. Deus me livre ficar entediado. Não há nada errado com o tédio. Não ter nada para fazer pode ser maravilhoso. E numa época em que quase todo mundo que eu conheço tem burnout por excesso de coisas para fazer, talvez tudo o que precisemos seja a retomada do tal ócio criativo, do dolce far niente, da boa e simples contemplação, de onde podem surgir nossas melhores ideias, nossas criações mais fantásticas, ou, no mínimo, um merecido descanso para nossos cérebros hiperestimulados. Então, filho, se você não tem nada para fazer, senta e olha para frente.”
Ele se sentou na poltrona por um total de quatro minutos e quarenta e seis segundos, antes de levantar num pulo e decidir ler o Hobbit pela terceira vez.
Compartilhei minhas reminiscências com o marido.
“Você não tem saudades daquela época de adolescente”, perguntei, “em que você só ficava deitado na cama, à tarde, pensando na vida?”
Ele me olhou como se eu fosse louca.
“Eu nunca fiz isso. Tudo o que eu queria era impedir meu cérebro de pensar na vida. Botava música no ouvido o mais alto possível, que era para não ouvir meus pensamentos.”
“Isso super funciona”, eu disse.
Compre meus livros aqui:
MARTINS FONTES PAULISTA
AMAZON BRASIL
LIVRARIA DA TRAVESSA
LIVRARIA CANOA (EUA e CANADÁ)
MOCHO EDIÇÕES
UM LIVRO
CAROCHINHA EDITORA
Tenho Pandora Não Dormia e Needle the Beetle autografados, para envio para o Brasil (de São Paulo) e Mundo (do Canadá). Mande mensagem para o email: anaelisagg@gmail.com
O pior é que funciona de verdade. É de onde vem a maior parte das minhas ideias. A única atividade que ultrapassa é andar. Tem algo em mexer as pernas em ritmo que desencadeia umas conexões na cachola.
Muito bom. Estamos
No mesmo clima