As vozes na minha cabeça andam calmas, e, talvez por isso, eu não esteja conseguindo escrever. Talvez minha criatividade tenha largado do módulo produtividade-louca-causadora de insônia, e esteja achando que eu habito algum recanto idílico do século XVII, onde posso viver sem pressa e produzir arte ao ritmo da vida desconectada.
Aconteceu há um mês: esse evento. Essa reprogramação cerebral à qual venho me acostumando desde então. Havia saído para correr no mato, pela primeira vez desde que a neve derretera e tornara corríveis as trilhas. Tinha nos ouvidos a música eletrônica de sempre, que me impele a manter os passos rápidos o bastante para entrar no “pace” médio pré-definido pelo homenzinho que mora dentro do meu relógio. O homenzinho que mora dentro do meu relógio dizia que eu deveria correr numa média de 6 minutos e trinta segundos por quilômetro. Mas o homenzinhoque mora na minha cabeça dizia que isso era muito devagar. Razão pela qual o relógio apitava continuamente, fora do ritmo da música eletrônica, avisando que eu estava indo rápido demais para aquele treino.
Eu vinha fazendo isso com frequência: isso de desobedecer ao homenzinho no meu relógio. Mas ainda que seja quase sempre bom a gente desobedecer a homenzinhos em geral, minha rebeldia era sem causa. Ou melhor, com causa: causada pelo homenzinho na minha cabeça. Esse sim precisava ser desobedecido.
O homenzinho na minha cabeça dizia que era ridículo eu correr um treino curto daqueles a 6:30, porque TODO MUNDO (não é todo mundo) corre mais rápido que isso. O homenzinho na minha cabeça dizia que minhas provas de corridas não tinham NENHUM VALOR (claro que têm) porque eu demorei muito para completá-las. O homenzinho que mora na minha cabeça dizia que o ÜNICO JEITO (não é o único jeito) de correr bem uma ultramaratona é correr rápido. O homenzinho na minha cabeça dizia que eu TINHA QUE (não tinha que nada) treinar mais rápido, para baixar meu tempo, e ter tanto valor quanto TODO MUNDO (não é todo mundo) que faz maratona em pace de cinco minutos e tralálá.
O homenzinho na minha cabeça se alimentava dos feedbacks do homenzinho do meu relógio, que, muito enfurecido com minha desobediência e meu consequente cansaço por correr mais rápido do que ele mandava, piscava na tela: IMPRODUTIVO. O homenzinho na minha cabeça acreditava que o segredo para consertar uma pessoa improdutiva é obrigá-la a produzir mais. Mais, melhor e mais rápido. E o homenzinho na minha cabeça achava que a melhor maneira de fazer isso era criar um padrão ideal inatingível e uma meta, baseados na observação de outras pessoas que não são eu, e de preferência controlando bastante todas as variáveis. O homenzinho na minha cabeça adorava me lembrar de que meus tempos em prova vinham piorando, e que a causa disso era obviamente minha inaptidão, incompetência, falta de força de vontade, disciplina, e o fato de que, além de estar acima do peso, também tinha passado dos quarenta anos, o que só poderia querer dizer decadência e decrepitude. O homenzinho na minha cabeça não levava em consideração os anos de insônia que impediam minha recuperação muscular, a depressão que me roubava energia, ou mesmo o fato de que nos últimos anos minha rotina mudava de três em três meses, com empregos novos que me ocupavam o tempo e a cabeça. Nada disso era importante. O importante é que eu era um lixo de pessoa.
Naquele dia, o homenzinho que mora na minha cabeça ouviu o relógio apitar que eu corria muito rápido, e já começou de novo: “Isso, corre rápido, que esse relógio não sabe nada!”
Naquele dia, eu parei. Desliguei a música. Ouvi os passarinhos que haviam retornado ao fim do longo inverno. E uma outra voz, que não era a do homenzinho na minha cabeça, começou a falar. “Pra que diabos você quer correr mais rápido que isso?”, a voz disse. “Você só vai cansar à toa. Lembra do que você falou para a fulana que trabalha com seu marido?”
Lembrei da fulana: era terça à noite, e bebericávamos uma cerveja, após um dos treinos semanais e noturnos organizados por um grupo da cidade. A fulana, que havia acabado de começar a correr, perguntava qual era o melhor pace para uma ultramaratona. “O melhor pace é o que você consegue sustentar durante a prova toda”, respondi. Ou o marido respondeu. Ou respondemos juntos, concordando, porque é o que faz mais sentido. “Se você consegue correr 50km montanha acima a 5:50, esse é o melhor pace. Se você completa a prova feliz, e sem se machucar, correndo a 8:30, esse também é o melhor pace. Quem faz corrida em trilha geralmente está lá pra se divertir, e deixa isso de correr muito rápido pro pessoal de elite que sobe no podium.”
E a voz na minha cabeça, muito mais suave e amorosa, disse:
“Não tem que correr rápido: é só continuar correndo.”
Diminuí o ritmo, relaxei os ombros, e corri sem mais ouvir o homenzinho na minha cabeça, e sem tampouco ouvir o homenzinho no meu relógio. Está na hora de esses homenzinhos todos ficarem quietos. Parei para olhar passarinhos. Andei quando me deu vontade. Tirei os fones de ouvido para estar na floresta.
Naquela noite, e em todas as que vieram depois, fechei os olhos sem listar na minha mente as tarefas não cumpridas e as metas não alcançadas. No dia seguinte, tomei meu café com calma, sem tentar encaixar no meu dia mais obrigações do que tenho horas. Naquela tarde, escolhi fazer o trabalho que mais me apetecia, e parei quando achei que era hora de descansar. Não correr para a próxima tarefa: descansar, fazer nada, olhar pra frente.
As horas passaram devagar, como se eu habitasse algum recanto idílico do século XVII, onde eu posso criar uma vida sem pressa, em que, de um jeito ou de outro, eu consigo terminar o que precisa ser terminado, e ainda viver. Viver, viver nossa vida, esse item que nunca aparece nas listas de tarefas das pessoas insones. Não tenho escrito muito, porque tenho escolhido fazer outras coisas. Porque tenho pintado. Porque tenho lido. Porque tenho sentado no sofá depois do trabalho com meu café e olhado pela janela. Tenho escolhido e ficado contente com minhas escolhas. Porque sei que em outro dia vou escolher escrever no lugar de pintar, e vai ser ótimo também. Tenho feito muitas coisas. A vida anda corrida. Mas uma corrida relaxada. Porque não preciso correr rápido: só preciso continuar correndo.
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Manda esses homenzinhos a merda!